Marlene - 1951
Quem pesquisa a história da música brasileira, com certeza deve ficar impressionado ao se deparar com obras valiosíssimas, artistas de enorme talento que, hoje, pouco ou nada recebem de atenção, não só da mídia, mas pior: da memória popular. Há personalidades tão fora do comum, que fazem de sua arte e de sua vida algo tão intrínseco à história cultural de seu país, que se tornam mitos. Marlene é um mito. Cantora dona de uma trajetória tão rica e sintomática de seu tempo que causa admiração ao ser (re)descoberta em nossos dias atuais, pois constatamos o quão atual é a sua obra.
Paulistana do bairro da Bela Vista, filha caçula de imigrantes italianos, Victoria Bonaiutti de Martino se consagrou em nossa música como Marlene, nome que lhe deram seus colegas estudantes quando ela ainda cantava como amadora na Rádio Bandeirantes. Sua estreia profissional foi em 1940 na Rádio Tupi, escondida da família e, decidida a crescer como cantora partiu para o Rio de Janeiro onde trabalhou nos mais badalados cassinos, casas de show e rádios de prestígio na época, até chegar à Rádio Nacional em 1948. Através desta emissora, Marlene se tornou uma estrela e, após ser coroada a Rainha do Rádio de 1949, foi lançada como ídolo nacional. Uma época em que os cantores do rádio de fato reinavam soberanos de talento que hoje pouco se conhece, em corações do Brasil inteiro. Já virou lenda a eterna rivalidade entre seus fãs e os de Emilinha Borba, o grande nome do rádio brasileiro. Os eufóricos fãs que cercavam a Rádio Nacional aos gritos de "É a maior!" ou ainda "Acode! Acode! Acode! Com Marlene ninguém pode!" foram as testemunhas de que a tietagem pelo ídolo não é coisa de hoje somente. Também atriz, Marlene participou de muitas peças e filmes - muitas montagens antológicas e produções históricas, diga-se de passagem.
Marlene no auditório da Rádio Nacional - Anos 1950
Marlene sofreu, como outros artistas de sua geração, as adversidades que o tempo trouxe. Os novos movimentos musicais, o declínio do rádio, a intervenção política dos militares... Contudo, a verdade é que poucos de sua geração souberam enfrentar essas mudanças como ela. Marlene se reinventou, não parou. Ela não é apenas a "cantora do rádio", ainda que seu auge tenha sido os anos 1950. Em 1968, no espetáculo "Carnavália", deu nova guinada em sua carreira cantando a história do Carnaval. Na década de 1970, aproximou-se de compositores como Chico Buarque, Gonzaguinha e Caetano Veloso, entre outros, entrando para a frente de artistas que através da música disseram não ao regime ditatorial. Ficou muitos anos sem gravar trabalhos solos, pagou os preços do quase esquecimento dos grandes veículos, mas criou uma trajetória única, que só essas figuras lendárias possuem.
Marlene defendendo "Carangola" no VII Festival Internacional da Canção - 1972
É comum ouvir, sobretudo de pessoas mais velhas, que o Brasil não tem memória, que a música de hoje não presta etc. Fatalismos que cansam e em nada ajudam, pois são produtos do saudosismo. O bom e o ruim sempre existiram na música, não há que duvidar e, de fato, vamos combinar que a mediocridade se levanta e faz a festa com uma frequência absurda. Mesmo assim, ainda há o bom e há aqueles que mantêm vivo o interesse e o amor pelo que de bom nós produzimos. O tempo muda, as condições se transformam, mas o legado de pessoas como Marlene é eterno. Cabe a quem quiser pesquisar e divulgar, e eu quero!
Marlene em sua casa - 2009. Na próxima terça, 22/11/2011, completará 89 anos.
Vou terminando esse texto, que acabou tomando forma de homenagem e protesto... Afinal, como diz a música de Maurício Tapajós e Hermínio Bello de Carvalho ("Queixa", feita para Marlene): "Me deram voz e não fica bem eu calar"! E onde cabe uma citação, cabem duas: como afirmou Carmélia Alves, outra grande intérprete da nossa música popular, Marlene "é uma das cantoras mais poderosas do século". Mas para entender isso, é preciso mais do que um mero texto sobre ela, é preciso ouvi-la, é preciso vê-la. Pois Marlene é alegria, tristeza, revolta, festa e poesia em música e movimento.
"Apito no samba" (1958-59)
"Galope" (1974)
"Badaladas / Boas festas / Good bye, boy" (1977)